Grupo de História das Populações

Investigadores Projecto Espaços Urbanos

 

Faustino, José Alfredo Paulo - Calvão: uma paróquia rural do Alto Tâmega (1670-1870)

O presente estudo sobre a população e a sociedade de Calvão, entre 1670 e 1870, é fruto de um trabalho meticuloso, aturado e sério, cujos fundamentos assentam nos registos paroquias da freguesia, de razoável qualidade, que se encontram no Arquivo Distrital de Vila Real.

O recurso à metodologia de "reconstituição de paróquias", desenvolvida por Norberta Amoriin, como temos vindo a mencionar, permitiu seguir a trajectória de vida de cada indivíduo, as histórias reprodutivas dos casais, assim como, a estruturação da sociedade paroquial (308) . Deste modo, esta abordagem, para além de nos possibilitar a análise das variáveis demográficas da fecundidade, nupcialidade, mobilidade e mortalidade, ao organizar a informação pelo indivíduo, família e paróquias conduzindo-nos, quando a informação, na base de dados, foi cruzada com outras, a novas abordagens.

Nesta paróquia, a idade média ao primeiro casamento dos cônjuges foi elevada, para ambos os sexos, de 28,9 para os homens e de 28,2 anos para as mulheres, evidenciando uma grande dificuldade de acesso ao matrimónio. É interessante verificar que as mulheres nascidas em Calvão casam, em média, com mais três anos do que os homens, situação que se mantém até meados do século XVIII. Este procedimento de atrasar a primonupcialidade feminina, trouxe naturalmente importantes implicações nos níveis de fertilidade e na diminuição da convivência conjugal Em Poiares, por exemplo, entre 1680 e 1739, a idade média ao primeiro casamento era de 28 anos para os homens e de 25 para as mulheres. O que justificará esta dificuldade no acesso ao casamento por parte da mulher da paróquia? Uma emigração diferencial que afecta mais os homens? Uma mortalidade infantil mais penalizadora do sexo masculino? O sistema de herança?

Uma segunda constatarão é que, para as gerações femininas nascidas entre 1730 e os finais do século, a idade média ao casamento baixa para valores próximos dos 25 anos, enquanto que a dos homens estabiliza à volta dos 29 anos. Assim, contrariamente às gerações anteriores, os homens passam a casar mais tarde e as mulheres mais cedo.

Considerando agora os comportamentos verificados para Poiares, "vemos reduzir a idade iriédia ao primeiro casamento dos homens e subir a das mulheres, passando respectivamente para 26,4 e para 25,6". Pode-nos parecer, pelo exame deste parâmetro, que estamos perante dois quadros demográficos distintos, caracterizando-se o "sistema" demográfico de Calvão por uma maior redução do período fecundo das mulheres, contudo, a análise de outros indicadores evidencia-nos uma maior afinidade de comportamentos demográficos em relação às paroquias de Trás-os-Montes do que em relação às paróquias minhotas.

O celibato definitivo é outro agente delapidador do potencial reprodutivo da paróquia, assumindo valores relevantes, de 26,7%, para toda a observação, podendo atingir os 42,1%, nas gerações nascidas entre 1680 e 1709. Se tivermos em atenção o celibato por sexos, concluímos que as mulheres foram mais afectadas, em 33,50/o, contra os 170/o do sexo masculino.

Em Poiares, o celibato definitivo oscilou entre os 10% e os 13 %, enquanto que em Guimarães, zona rural capitalizou 70%, no século XVIII, e 50%o, no início de Oitocentos.

Mediante estes valores, podemos depreender que o celibato definitivo se apresentou como um factor fortemente condicionante da evolução demográfica da paróquia, designadamente nos finais do século XVII e durante o século XVIII. A redução do celibato definitivo, no século seguinte, acompanhou a diminuição da idade média à primonupciahdade, indiciando um incremento da capacidade reprodutiva nos princípios do século XIX.

Para compreendermos a evolução da capacidade reprodutiva da paróquia, começámos por estudar a fecundidade legítima, por grupos de idades, para todas as idades fecundas ao casamento, nos dois períodos considerados. Constatámos que as primeiras concepções se anteciparam para os primeiros grupos de idade, quando passamos do século XVIII para o XIX, aumentando o potencial reprodutivo nos grupos de idades até aos 30 anos, mas declinando ligeiramente nos seguintes, traduzindo uma "maturidade reprodutíva" mais precoce.

Quando comparámos a fecundidade legítima com Poiares e Guimarães rural verificámos que os resultados são muito próximos da primeira e demarcam-se nitidamente em relação à segunda, com vantagens para esta. Norberta Amorim já nos tinha acertado para uma fecundidade mais forte nas paróquias do Baixo Minho. O que estará por trás destes valores? Uma alimentação menos diversificado nas paróquias transmontanas? Uma mortalidade infantil menos forte? Ou razões biológicas?

Se usarmos outro indicador da fecundidade legítima, "descendência teórica",ou seja o número médio de filhos que essas gerações femininas teriam se vivessem em unidade conjugal entre os 20 e os 49 anos de idade, verificamos uma aproximação a Poiares e um afastamento em relação a Guimarães rural, obtendo 7,95 filhos em Calvão,7,93 filhos em Poiares e 9, 32 em Guimarães.

As taxas de fecundidade podem reflectir já os níveis de fecundidade legítima na paróquia em estudo, mas o quadro do potencial reprodutivo deve ser completado pelos indicadores, "um número de filhos nascidos por união" e "espaçamento dos nascimentos". Estes correspondem a um tempo morto, entre dois nascimentos, cuja duração depende da influência dos factores fisiológicos e dos hábitos culturais da sociedade. É neles que Dupâquier encontra a chave-mestra da chamada fecundidade natural, que marca os ritmos de reprodução legítima. Em Calvão e Poiares, encontrámos intervalos intergenésicos na ordem dos 27,5 meses, enquanto que em Guimarães se situam em torno dos 25,9 meses.

Se tomarmos, agora, o indicador de fecundidade "número de filhos nascido por união", arrolamos, em média, cinco filhos para Calvão e Poiares e seis para Guimarães, por família fecunda, para o período do Antigo Regime.

O número de filhos que uma mulher poderia dar à luz, dentro do casamento, estava dependente da sua idade ao casamento, e da duração da vida conjugal. Só a primeira dependia da sua vontade condicionada,
é certo, pela comunidade onde se insere. Quanto à convivência conjugal, ela podia ser interrompida pela crueldade da morte. Assim, as diferenças evidenciadas quanto ao número médio de filhos nascidos, por família fecunda, pode indiciar diferentes durações das uniões, nas paróquias em confronto. Enquanto em Calvão a duração média da convivência conjugal se detinha nos 23 anos, em Poiares elevava-se aos 27 e em S. Pedro de Alvito, no Minho, estava acima dos 26 anos.

Nem toda a procriação, porém, se fez dentro do casamento, onde normalmente as crianças são concebidas e nascem, como refere François Lebrun, tendo circunstâncias várias influído para que tal não ocorresse. Alguns autores vêem, na expressão do fenómeno da ilegitimidade, a influência da religiosidade e do ascetismo nas sociedades do Antigo Regime. Assim sendo, ela funciona como um escape à repressão sexual resultante das restrições matrimoniais. Opinião diferente tem Brian O'Neil, que, com base em estudos realizados numa aldeia de Bragança, afirma que essas restrições conduziram os excluídos do casamento a praticar uma sexualidade "ilícita" e extraconjugal com mulheres dos grupos sociais mais baixos, as jornaleiras, que pode levar, no decorrer das gerações, ao aparecimento uma linhagem de mães de filhos ilegítimos.

Na paróquia de Calvão, não se detecta qualquer subsociedade, nem o fenómeno se restringe a um determinado grupo social, devendo, no entanto, mencionar-se que a ilegitimidade converge com maior intensidade para as mulheres de fraco grau de integrarão social na paróquia.

Em Calvão, as taxas de ilegitimidade passam de 2,8%, quase insignificante e próxima da europeia, nos finais do século XVII e princípios da seguinte, para 14,5% nos meados de Oitocentos, aproximando-se dos valores alcançados pelas paróquias minhotas.

Assim, para o Norte do nosso país, desenham-se duas realidades bem diferenciadas: o Baixo Minho, com altas taxas de filiação natural, onde "mais de 12% dos nascidos podia não o ser em família legítima, chegando a atingir se pontualmente percentagens superiores a 30%; e a transmontana, com taxas menos fortes, ainda que estas possam subir no séc. XIX.

Também a mobilidade não foi um fenómeno fácil de analisar, apesar de influente e reguladora nas sociedades do Antigo Regime, tanto mais que não possuíamos fontes apropriadas ao seu estudo, tais como os registos de passaportes, róis de confessados ou outros. Não obstante utilizarmos a metodologia de "reconstituição de paróquias" que nos permite, pelo cruzamento de fontes, isolar o indivíduo do seu agregado familiar, temos como óbice a inexistência, como já referimos, de mortalidade infantil.

Para além de registarmos as "saídas" pelas "notícias" de óbito e fixarmos as "entradas" no momento do matrimónio e do óbito, quisemos, ainda, tratar a perspectiva dos casais que desenvolveram o seu cicio procriativo na paróquia.

Se as "entradas" pelo casamento ocorreram, na sua maioria, das aldeias mais próximas, já uma parte significativa das "saídas", pelas "notícias" de óbito do século XVIII, verificarem-se para o Brasil, muito antes das "grandes partidas" dos finais de Oitocentos.

Não contando com os registos de mortalidade até aos sete anos de idade, e sendo sempre difícil a identificação ao óbito dos indivíduos solteiros, fomos levados a abordar os indicadores, "níveis de mortalidade" e "esperança de vida", somente para os casados maiores de 25 anos a fim de se evitar o efeito perturbador da emigração. Desta feita, os cônjuges de Calvão apresentam, aos 25 anos, uma esperança de vida de 37,1 anos, superior, na mesma situação, aos 30,5 anos de um paroquiano de Poiares, mas menos favorável ao de um freguês de Ronfe (39,3), ou do Sul do Pico (43,2).

As crises de mortalidade, reguladoras do crescimento demográfico, na opinião de Livi-Baci, ou somente estimuladoras da renovação das estruturas da população, no dizer de Dupâquier, também afectaram as gentes da paróquia. Na verdade, a mortalidade foi particularmente intensa no início e no final da primeira década do século XIX Se a segunda teve origem nas invasões francesas, da primeira desconhecemos as causas que a terão favorecido.

Optámos por integrar os comportamentos sazonais das variáveis num capítulo à parte, a fim de estabelecermos um nível de afinidade comparativa mais próximo. É interessante verificar que, nos primeiros meses do ano, ocorrem, preferentemente, nascimentos e casamentos, enquanto a mortalidade surge, com maior intensidade, nos meses de Outono.

Particular interesse revestiu, para nós, a exploração dos testamentos, tendo constituído uma experiência apaixonante e profícua. Uma vez mantido aberto o ficheiro de indivíduos, pudemos cruzá-lo com as informações nominais recolhidas nos documentos em análise. Começámos por confrontar a evolução dos comportamentos da mortalidade com a evolução do fluxo de testamentos, evidenciando, na longa duração, uma tendência concordante, situando-se a um nível superior aos 50%, após meados de Setecentos, é que, como refere M. Vovelle, "o único método válido para apreciar a representatividade real do acto de testar, é sem dúvida a confrontação com o fluxo da mortalidade".

A atitude de fazer testamento, numa sociedade post Tridentina, está ligada à ideia de que é necessário preparar "uma boa morte". A Igreja difundia o conceito de que o horrível não era morrer, mas como se morria. Daí as numerosas obras "Ars Moriendi" que ensinavam os crentes a morrer, pois, "saber morrer" podia ilibar uma vida mundana e indigna.

O trabalho desenvolvido na exploração dos testamentos perrnitiu-nos uma aproximação à religiosidade de uma época, reflectida no quadro de uma sociedade rural O indivíduo exteriorizava, no momento de preparar a sua morte, os mecanismo mentais que o moviam, em ritos e símbolos que o identificavam na estrutura social da comunidade do seu tempo. Pelo que o testamento era a última oportunidade do moribundo marcar a sua relação com o mundo, tentando, por um lado, aliviar as suas penas eternas, e, por outro, gozar da oportunidade de se perpetuar entre os vivos.

À medida que a nossa pesquisa ia avançando, tivemos oportunidade de encontrar as especificidades e as formas diferenciadas das sucessivas gerações da paróquia se relacionarem com o seu espaço. As práticas culturais, os diferentes ritmos de crescimento e a dinâmica das variáveis micro-demográficas são o reflexo desse movimento de equilíbrio/desequilíbrio em que evolui o "sistema" demográfico da paróquia.

Se os finais do século XVII e princípios de XVIII se caracterizaram por um equilíbrio das variáveis em índices mais elevados, eles tendem a decair gradualmente até meados de Setecentos. A tendência é de recomposição, após a viragem dos meados deste século, seguida de expansão. Esta situação seria interrompida, na primeira década de Oitocentos, por duas crises demográficas, uma em 1800 e outra em 1809. Evidenciando-se, a partir de então e até finais da nossa análise, uma tendência de crescimento populacional nítido.

Em síntese, estamos perante um "sistema" demográfico que se caracteriza por uma idade tardia ao primeiro casamento, um persistente celibato definitivo, elevados intervalos intergenésicos, baixas taxas de fecundidade legítima e ilegítima, com uma suavidade de mortalidade dos maiores de 25 anos de idade, que se conjugavam para equilibrar a população no quadro geográfico da paróquia. Embora este quadro se aproxime do "sistema" demográfico das paróquias transmontanas de Poiares, Rebordãos e Cardanha, alguns mecanismos apontam, com certas cautelas, para uma sub-região transmontana, com particularidades nos comportamentos demográficos, pelo que só um trabalho de "reconstituição," alargado às paróquias circunstantes darão consistência às nossas constatações. Deste modo, o nossa trabalho monográfico de síntese não é um estudo acabado, mas um ponto de partida para futuras investigações que o tempo haverá de apurar.